sábado, 4 de junho de 2011

Fofa


A "fofa" era uma dança portuguesa do século XVIII, que chegou a ser dançada no Brasil. Segundo um testemunho da época, deixado pelo padre Bento Capeda, num texto sobre os jesuítas, datado de 1761, o padre Manuel Franco, do Colégio de Olinda PE, “dançava a fofa, que é dança muito desonesta, com mulheres-damas”.

História de mineiros e da fofa

A fofa, citada pela primeira vez no Folheto de Ambas Lisboas de sexta-feira, 6 de outubro de 1730, como sendo dança praticada ao lado do cumbé por pretos de Lisboa na Festa do Rosário de domingo, primeiro de Outubro daquele ano no Bairro de Alfama, estava destinada a ganhar tal aceitação em Portugal que pouco mais de trinta anos depois, em 1766, o viajante francês Dumouriez a consideraria "dança nacional", o que em 1777 seu patrício Duc Du Châtelet repetiria ao vê-la dançada pelo povo nas ruas da capital portuguesa, às vésperas da coroação da rainha D. Maria I: "O povo corria de um lado para o outro, cantando e dançando a foffa, dança nacional, executada aos pares, ao som de viola ou de qualquer outro instrumento; dança tão lasciva que se enrubece só de assisti-la, e nem teria coragem de descrevê-la".

A data de 1730 em que a fofa é citada como dança de escravos africanos e crioulos ligados à Confraria do Rosário em Lisboa (o nome aparece na carta escrita em "língua de negro" em que o Rei Angola convida o Rei Mina para a procissão onde se cantaria o zaramangoé e o convidado dançaria a fofa - "traze vussé nos forfa") coincidia com o início da época de torna-viagem de muitos portugueses atraídos desde o fim do século XVII para o Brasil pela miragem da riqueza nas minas gerais. Em seu regresso a Portugal, alguns enriquecidos em grande parte não apenas pela mineração legal, mas pelo contrabando extorsivo, muitos desses aventureiros bem-sucedidos - agora chamados de mineiros - faziam-se acompanhar de um verdadeiro séquito de escravos domésticos, para causar impressão. E isso deve ter sido um fato tão freqüente que chegou a refletir-se na temática dos entremezes do teatro popular português quase como lugar-comum, através do personagem que por astúcia se fazia passar por rico recém-chegado das minas do Brasil.

Um exemplo seria o do Entremez Intitulado Gatuno de Malas Artes, de 1779, em que o namorado da filha de um avarento se finge de herdeiro de um tio falecido rico no Brasil, e cujas situações de riso seriam praticamente repetidas em 1790 no Entremez ou Novo Drama Intitulado Raras Astúcias de Amor. Neste, o namorado repelido por pobre, Alceu, aluga uma casa fronteira à do ambicioso médico pai da moça e, ao chegar com seus pertences, faz subir por cordas dois pesados baús cheios de areia, fingindo conter dinheiro. E para despertar a cobiça do futuro sogro chama-o para uma consulta, fazendo seus escravos negros arrastarem penosamente um dos baús para que se sentasse. Não é preciso dizer que é o próprio médico ambicioso quem procuraria agora aproximar a filha do "mineiro": (...) Mas diga-me que lhe parece as perfeições que adornarão minha filha? vio lá pelas Américas semblante mais gentil?"

Ora, não é de estranhar que a experiência cultural de tais "mineiros" emigrados - e ainda mais a de seus escravos negro-brasileiros - se manifestasse, pois, de alguma forma, ao estabelecerem-se novas relações com a sociedade a que tais personagens regressavam ou a qual vinham integrar-se de forma duradoura. E uma prova de que isso realmente acontecia seria oferecida através de um depoimento de um dos mais atentos críticos de Lisboa da primeira metade do século XVIII, o redator de folhetos da série Anatómico Jocoso, frei Lucas de Santa Catarina (1660-1740), E, de fato, ao compor uma entrada para representação nas festas de Nossa Senhora do Cabo, atribuía ao personagem Fressura Malsim (o fressureiro, vendedor de miúdos) o seguinte comentário sobre o viver da gente do seu bairro, Alfama:

Da semana na ribeira,
Ao dia santo no bairro,
Mas sobre tudo a viola,
E o pandeiro veterano.
Ou à tarde no baptismo,
Ou à noite no noivado.
Do Brasil em romaria
Os sons vem alli descalços,
Crião-se alli, alli crescem,
E dalli se vão passando
Pouco a pouco para as chulas
Piám piám para os mulatos.

Nesses poucos versos da fala do Fressura - que, por sua atividade ambulante e comércio pobre, era realmente o mais credenciado conhecedor do bairro popular de Alfama - estava esboçado o retrato perfeito do que ao tempo acontecia: após uma semana de trabalho duro na Ribeira, os humildes de Alfama reuniam-se nas praças e ruas do bairro para gozar a folga dos dias santos. E para tudo era um bom pretexto - um batismo à tarde, um noivado à noite -, quando então aparecia sempre uma viola e um velho pandeiro a acompanhar os discantes e as danças que a nova composição da gente urbana agora exigia.

E que sons seriam esses feitos para tal tipo de gente? Eram os sons que por aquela primeira metade da Idade do Ouro no Brasil chegavam a Portugal em verdadeira romaria, e ali, na Alfama, iam ganhar pela continuação do cultivo os contornos locais que logo os levaria a figurar, aos olhos e ouvidos dos visitantes estrangeiros, como "danças nacionais".

E frei Lucas de Santa Catarina em sua crônica do tempo, pela boca do Fressura, não deixava inclusive de mostrar como se dava esse processo de adaptação, ao esclarecer que, chegados da colônia descalços - isto é, levados pelos negros escravos brasileiros, aos quais era vedado usar sapatos -, as novas formas de danças e cantos passavam ao repertório moderno das chulas "giribandeiras" (que era a gíria do tempo para falta de compostura), para pouco a pouco interessar aos mulatos, que certamente as fariam chegar ao público das camadas médias do teatro popular dos entremezes.

E o curioso é que, muitas vezes, era através desse tratro que as famílias brancas da elite colonias iam tomar conhecimento no Brasil - em singular exemplo de refluxo cultural - de tais novidades algo escandalosas, mas por isso mesmo excitantes como espetáculo.

Um tipo de reação que não deveria ser muito diferente daquela das próprias camadas burguesas de Lisboa, como a captada em 1774 diante de uma dessas representações pelo viajante inglês William Dalrymple, que assim resumia:

"Em uma das pequenas farsas ridicularizava-se o jeito dos brasileiros até com certo humor; mostrados como gente sempre muito formal e pedante, de cambulhada com negros, macacos e papagaios, era a forma algo grosseira dessa crítica que mais parecia agradar ao público: uma velha mostrada a peidar repetidamente diante do patrão provocou imenso aplauso, inclusive partido dos camarotes."

Para completar, referindo-se exatamente à reação do mesmo público ante o número de dança da fofa, que como inglês em trânsito, não sabia importada do Brasil:

"A fofa, dança tão representativa deste país quanto o fandango da Espanha, foi apresentada no entremez por um negro e sua companheira; foi a coisa mais indecente a que já assisti, mas, apesar de bem mais apropriada a um público de baixa condição, nem por isso pareceu desagradar a qualquer; pelo contrário, as mulheres reagiram à cena com a maior naturalidade, enquanto os homens prorromperam em aplausos.

Segundo o francês Dumouriez, que vira a mesma fofa dançada oito anos antes também nos palcos de Lisboa, a particularidade coreográfica da dança que tanto escandalizara o inglês (mas não já as senhoras burguesas da segunda metade de Setecentos) eram com certeza os movimentos do corpo do par imitando o momento do gozo (le moment de jouissance), e aos quais - a acreditar no testemunho do francês - o dançarino ainda acrescentava o estímulo de "gestos obcenos e palavras lúbricas, em que o público achava graça".

Em face da raridade das referências à fofa no Brasil do século XVIII - exceção feita à do padre Bento de Cepeda em sua Relação sobre o deplorável estado a que chegou a Companhia de Jesus nesta província do Brasil, dando conta de que, em Pernambuco, um padre Manuel Franco "dançava a fofa (que é dança desonesta) com mulheres de má-reputação" - poder-se-ia talvez por em dúvida a origem brasileira dessa dança tida sempre como portuguesa, não fora a indicação expressa no folheto de cordel intitulado, desde logo, Relação da Fofas Que Veio Agora da Bahia, E o Fandango de Sevilha, Applaudido pelo Melhor Som, Que Ha para Divertir Malancolias e o Cuco do Amor Vindo do Brasil, por Folar, Para Quem o Quiser Comer.

O folheto de cordel, de oito páginas, sem data, e com impressão suposta na Catalunha (certamente por não ter subido a exemplo da Mesa Censória), publicava, no entanto em apêndice a lista das igrejas providas em 1752 pelo rei D. José no bispado da Guarda, o que tornava a probabilidade desse ano para a edição perfeitamente concorde com certas particularidades do testo, que a certa altura dizia: "Ora viva; que nem o outavado d'Alfama lhe chega ao calcanhar, nem o som de Macau lhe dá pelo bico do pé, e nem a filhota de Coimbra lhe excede".

Na verdade se se tomar como base que em 1730 o Folheto de Ambas Lisboas situava a fofa como dança dos negros do Rosário, e que antes do fim dessa década frei Lucas de Santa Catarina já previa sua trajetória "pouco a pouco para as chulas / piám piám para os mulatos", nada mais compreensível do que o texto dessa Relação da Fofa Que Veio Agora da Bahia em 1752:

"Viva; que por ser folgazona, renderá à mais guapa, cativará a mais Eres, alegrará à mais triste, dará gosto à mais entendida entediada, e prenderá à mais tola. Que viva a dita Fofa, que por beiços a tanta gente, para atrair e inquietar, mover e bailar; e tirar a terreiro; mas o certo é que só esta Fofa é singular, bela, estupenda, e perfeita, para causar tudo isso; pois viva a Fofa da Bahia, viva, via."

Embora não se tenha notícia do registro escrito dos sons que faziam a fofa "por beiços a tanta gente", uma indicação quanto ao seu ritmo encontrada em outro folheto - a Relaçam Curiosa De Várias Cantiguas Em Despedidas, Da Corte Para o Dezerto - talvez lhe explique o segredo: ao contrário das demais danças populares européias da época, que até pelos nomes indicavam a regularidade do som, como era o caso do oitavado que viera desbancar, a fofa era repenicada.

Depois que veio esta moda
Das fofas repenicadas
Dela saíram as sécias
Feridas, e bem arranhadas.

Ai lê quem é
É um tratante da moda
Que a fofa dança de pé...

Tal tendência a "fazer faltar" e a "tremer o corpo, e arrancar as unhas dos pés a moda d'osga" que o redator português da Relação enxergava na dança, ao lhe explicar o espírito folgazão, derivava certamente da sua origem negro-africana-crioula do Brasil, como ele mesmo, aliás, indicava, ao mostrar o sucesso da fofa entre os negos de Portugal.

Fontes: História Social da Música Popular Brasileira - José Ramos Tinhorão - Editora 34 - 1998; Enciclopédia da Música Brasileira - Art Editora.

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