quarta-feira, 25 de maio de 2011

Dança da Santa Cruz


A dança-da-santa-cruz é uma cerimônia coreográfico-religiosa que tem lugar durante a festa da Santa Cruz, celebrada nos dias 2 e 3 de maio e, ao que parece, existente apenas no Estado de São Paulo (na foto: a cerimônia em Carapicuíba-SP).

Aparenta-se parcialmente ao costume português em que um grupo de indivíduos, partindo de uma igreja, vai entoar cantigas religiosas diante de cada casa do lugar. Pela localização geográfica e coreografia, a dança parece representar a permanência de costumes vindos do primeiro século da colonização e nascidos da catequese jesuítica. Tem semelhanças com o cateretê, em suas características básicas, e comumente termina pelo cururu.

Alceu Maynard Araújo assim descreve a dança realizada em Itaquaquecetuba, São Paulo, em 1949: “Ao redor da praça e nalgumas ruas da vila, as casas ostentam na sua face externa entre a janela e a porta, a uma altura de mais ou menos dois metros, uma cruz. (...) É defronte das cruzes que passam a noite dançando... e às vezes vão até o meio-dia. (...) Para a dança não há traje especial. É uma dança de roda, que gira no sentido lunar, isto é, contrário ao dos ponteiros do relógio. Os dançantes vão batendo os pés compassadamente sob o ritmo da viola. Pateiam duas vezes com o pé esquerdo e uma com o pé direito, obrigando o corpo a um bamboleio repicado. (...) À frente dos dançantes vão dois violeiros; e atrás de um deles, um tocador de adufe. Os violeiros são ‘mestre’ e ‘contramestre’. Imediatamente atrás vêm o ‘tipe’ e o ‘contralto’. O ‘tipe’ era também o tocador de adufe. (...)

Nas primeiras casas onde dançam há uma completa desorganização porque há muita gente dançando. Mais tarde, pela madrugada afora, atrás dos cantadores, colocam-se os dançantes em coluna por dois. Os dois ceroferários são os primeiros a chegar; reverentes com suas tochas bruxuleantes postam-se sob a cruz de uma casa. Seus donos aparecem nas janelas ou porta. Atrás dos violeiros, chegam os dançadores. Os violeiros defrontam a cruz e começam o canto (...), (apoiando) o mento na viola, dedilhando-a na posição ‘religiosa’. Batem os pés, e os demais dançantes também o fazem. Cada dístico improvisado pelo ‘mestre’ é entremeado de pateios. Cantam três dísticos e ao finalizar uma série deles dão três voltas, todos batendo os pés, com exceção apenas dos violeiros. Depois de rodar três vezes, param novamente, ficando os violeiros a defrontar a cruz, enquanto os demais dançantes formam um semicírculo; outras vezes, alinham-se em duas longas filas, que têm à testa os violeiros. O número de rodadas varia (...).

Quando vão cantar para a última rodada, para finalizar, os violeiros aproximam-se da cruz, fazem u’a mesura, inclinando a cabeça, dão depois passos à retaguarda; novamente avançam, repetindo três vezes esse gesto que chamam de ‘beijamento’. Ao finalizar o terceiro beijamento a sua cantoria também termina numa oitava acima, com um oh! agudíssimo, em falsete. É uma fermata prolongadíssima, que nos faz lembrar um grito indígena. Terminou a dança. Quando vão se retirando, dão um estentórico ‘Viva a Santa Cruis!’ e um rojão espoca no ar.”

Câmara Cascudo acrescenta que os dísticos são alternados com ave-marias ou outras orações, cada uma dedicada a dois ou três santos.

A Dança da Santa Cruz

Quando os jesuítas fundaram São Paulo em torno da promissora Piratininga, como bastiões da conquista do planalto, outras povoações coevas apareceram. Formavam sem dúvida um cinturão jesuítico defensivo e de penetração, mui além das roças de Jeribatiba, as povoações de Itaquaquecetuba, Carapicuíba, Itapecerica, M'boy. Era amplo esse cinturão jesuítico, pois Nóbrega, solicitado pelos nativos, penetrou quarenta léguas de Piratininga e formou uma pequena redução ao redor de uma capela na aldeia dos carijós, na Japuíba ou Maniçoba. Ingente foi o esforço dos jesuítas fixando os indígenas nas aldeias, pois o trabalho mais árduo foi sem dúvida tirá-los do nomadismo.

A história nos conta que Itaquaquecetuba é proveniente de um aldeamento de índios guaianá oriundos dos então nascentes vilarejos de Carapicuíba e Guarapiranga, e que de lá saíram, espontaneamente ou brigados, ali pelo primeiro quartel do século XVII. Afirma Teodoro Sampaio que os guaianá são guarani, e citandoo dicionário de Montoya, diz que guaianá significa — manso, pacato, bonacheirão... Num aldeamento haviam elementos de diversas tribos, portanto heterogêneos eram os costumes, mas havia um traço de união, aplainando — o cristianismo que trazia em seu bojo o folclore católico romano — dirimidor de atristos. É óbvio que a índole pacata do catequizando muito ajudou... e sabe-se lá se os dóceis e religiosos dançadores de hoje não são descendentes de Tibiriçá, Catubi?

Itaquaquecetuba nesses três séculos e pouco de existência quase não alterou em nada sua tradição, de seu folclore inventado pelo missionário, artificial mas que substituiu. De fato, o isolamento geográfico, a falta de estradas, a inexistência de contatos culturais são fatores dos mais vigorosos para preservar a tradição. Foi, sem dúvida, graças ao isolamento que a dança da santa cruz permaneceu inalterada em Itaquaquecetuba. Traços fortes da etnia ficaram ligados aos cultos, às danças dos seus habitantes. A música mística, que o jesuíta ensinou, não só catequizou como amansou o bugre, porque tinha o dom de encantar. O canto, elemento litúrgico por excelência, fundiu-se com as danças de roda indígenas dando-nos o que hoje temos — a dança da santa cruz.

Outro fator que muito contribuiu para custodiar essa tradição de origem portuguesa-jesuítica foi a ausência quase completa de elementos alienígenas. Mesmo o negro é raríssimo nessa vila. Na noite de 2 para 3 de maio de 1949, pudemos assinalar poucos negros, e os demais participantes da reza e dança são portadores de traços característicos que traem sua origem ameríndia.

É indubitável a origem ameríndia dos atuais dançantes. Sim, dos dançantes, porque os novos moradores (que a recente estrada e a luz elétrica lá fizeram aportar) — só espiam, não entram na dança, e, antes da meia-noite desaparecem. A partir dessa hora é que se pode apreciar a dança e dançantes dos melhores.

Homens e mulheres tomam parte. Geralmente são pessoas idosas de mais de 40 anos de idade. Estes é que amanhecem na dança, porque os mais moços, que engrossaram a roda de dançantes, satisfeito seu natural desejo de exibicionismo, retiram-se. Aqueles que não residem mais em Itaquaquecetuba, nesse dia voltam para assistir à festa, mas raros são os que vão dançar. Acompanham de perto os dançantes até o dealbar do dia. É uma forma de desobriga para eles; porque marginais se tornaram pelo fato de não mais morar ali, envergonham-se de participar, mas sentem uma quase culpa de não dançar, e para satisfazerem-se a si próprios ficam acompanhando. Uma vez interpelados pelo pesquisador participante, dão a desculpa taxativa: "nós filhos daqui, não podemos deixar de vir, neste dia para a festa, para rever o lugar onde deixamos enterrado o umbigo". Para esses marginais, a tradição é qualquer coisa de embalsamado... mas para aqueles que ainda vivem ali, gente da vila e das circunjacências, humildes camponeses, para estes a dança da santa cruz é o mais sagrado e concorrido festejo religioso da terra. Bem traduz a frase registrada: "quem se preza num há de fartá na festa de santa cruz".

Nessa festa encontramos dois elementos religiosos: a reza e a dança. Dois são também os tipos de reza que anotamos. O primeiro é a reza da liturgia católico-romana, realizada no interior do templo centenário, dirigida pelo vigário dom Tomás; o segundo tipo de reza, que foge um pouco da liturgia romana, um sincretismo [?]-católico-romano, é [?] ao pé da santa cruz, situada no centro do largo que defronta a igreja. Esta reza é dirigida por um capelão caboclo. Neste dia dirigiu-a o sr. Joaquim Araújo Marques. O capelão tem sempre um ajudante; o deste foi o senhor Benedito Alves Camargo. Mas o capelão e ajudante contam com mais dois rezadores que ajudam a "repartir" a reza, e que são chamados repartidores. Nesta, os repartidores foram os os senhores Roque Rodrigues e ajudante de repartidor sr. Felício José Leano. Todos são roceiros, gente de situação econômica precária.

Na manhã do dia 2, há missa solene. Antes que os sinos batam o Angelus, o festeiro, isto é, o encarregado da realização da festa, que é geralmente uma pessoa de posses, de destaque político e social da vila, levanta com o devido acompanhamento musical da banda — a "furiosa" — sob espocar de rojões, o mastro com a bandeira de santa cruz. Este mastro fica na praça, na metade do intervalo entre a igreja e cruzeiro ou santa cruz.

Durante o dia, na casa da festa, há café com farinha ou biscoitos para os que vêm de mais longe. (O folclore brasileiro é por excelência alimentar...) Ao anoitecer, os moradores da vila comparecem à reza na igreja. Findo o ato religioso, o povo vai se aglomerando em torno da santa cruz. Nesse local, primeiramente existia apenas um cruzeiro de madeira, sopesado por toscas lajes de pedras, onde as lágrimas de espermacete das velas escorriam. Depois, a faina modernizadora ou ostentadora, mandou fazer uma espécie de obelisco, tendo ao redor, sete degraus de cimento. Foi o cumprimento de uma promessa dos pais de um expedicionário. Fizeram o monumento, colocaram um retrato do malogrado soldado da democracia. Mas o povo achou que aquilo era uma profanação; ele queria era o velho símbolo de fé — a cruz, a tão querida santa cruz. Às escondidas, ajudados pelas trevas da noite, andaram depredando o obelisco. À vista disso, o atual festeiro, sr. Narciso Cunha Lobo, concordou em retirar o retrato de seu saudoso filho que estava "no lugar sagrado". Embora não tenhamainda reposto o cruzeiro, deixaram os degraus. No mais alto deles, acendem uma vintena de velas e no imediatamente abaixo, lançam as ofertas... em níqueis de cruzeiros e centavos. No primeiro degrau, contritos e respeitosos ajoelham-se capelão e seu ajudante, que se coloca à sua direita. Atrás destes, ajoelhados em terra, ficam os "repartidores" e mais uns poucos devotos. Uma centena ou pouco mais, de pessoas em pé odeiam o cruzeiro. Vai ter início a reza da santa cruz.

((Araújo, Alceu Maynard. "Dança da santa cruz". Correio Paulistano. São Paulo, 12 de fevereiro de 1920, 3º caderno, p.10).

Fontes: Jangada Brasil; Enciclopédia da Música Brasileira - Art Editora.

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